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Sobre o Que Nos Corrompe

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mauricio falavigna

O desespero para evitar a volta de um governo popular faz com que, mais uma vez, a aposta recaia sobre o discurso moralista contra a corrupção. Os malefícios dessa prática se estendem para além da criminalização de um partido e de uma candidatura. Eles trazem descrédito ao processo político, aos seus agentes, ao debate de ideias e à vida pública. Mas traz benesses aos que mantêm o poder e enriquecem ainda mais no caos.

Embora não há como escapar da discussão moral, o próprio conceito contemporâneo de corrupção é uma capitulação ao sistema. Se para Maquiavel ela representava a degeneração das instituições e o fim das virtudes cívicas, se para Aron o cerne do problema era a confiança cidadã, o espírito público, esses eram autores com preocupações republicanas, que tratavam de todo o tecido social a partir de uma decadência moral. Mas, se tomarmos a definição de Bobbio – corrupção é “o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troco de recompensa"... Corrupto é, portanto, o comportamento ilegal de quem desempenha um papel na estrutura do Estado”. Ou mesmo a definição do Banco Mundial (base para a atuação de uma ONG global, transparentemente comprometida com a disseminação da corrupção como problema central dos países periféricos), onde corrupção é o “comportamento que quebra as regras que regem os agentes públicos no que diz respeito à busca de interesses privados, tais como riqueza, poder ou status.” Ou seja, a corrupção só se dá no âmbito do Estado.

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Mesmo que se leve em conta a questão da responsabilidade e da vigilância administrativa e legal, o fato é que, voltando aos termos morais, o pecado só se encontra do lado do Estado. Faz parte da natureza – e é, portanto, meritório – a intenção de sonegar, fraudar, ultrapassar as fronteiras dos trâmites legais, açambarcar o Estado a partir de interesses privados. Já a exploração econômica, a manutenção da desigualdade e dos privilégios da elite, o comportamento predatório não são alvos de recriminações, em uma moralidade que se estende dos principais noticiários às conversas nos pontos de ônibus. O ladrão, o mal, o obstáculo que impede a sobrevivência e o progresso (pessoal ou social) é o político. Ou, de maneira cada vez mais abrangente, abrindo estrada para o fascismo, a Política.

Para o debate público, os danos são claros. Deixa-se de discutir a questão do privatismo, as políticas econômicas, a tributação, direitos e garantias sociais, desigualdade, combate à pobreza, desenvolvimento, agricultura e abastecimento... As mazelas sociais são atribuídas ao setor público e à corrupção. O setor público, a grosso modo, na imagética popular, são “esses políticos”. Formadores de opinião naturalizam candidatos pretensamente “apolíticos”, e fecham o cerco ao embate, calam as opiniões que representem riscos à “estabilidades social” e ao ultraliberalismo econômico. E, como já se viu, o próprio sistema político pode ser arrebentado e conspurcado sob aplausos dos arautos morais da mídia. Se esta for a única solução, que venha um capitão boçal e seus fardados, que as togas assumam o Executivo, que uma gangue de procuradores formados no seio do Império impeçam qualquer desvio popular de nossa trajetória de poucos eleitos.

O combate à corrupção é, como eixo político e de governança, cínico e reacionário. Mas reagir a esse discurso com uma postura subserviente (“está bem, sabemos que é mentira, mas a sociedade se preocupa com isso”) nos levou ao fundo do poço em que estamos. A esquerda brasileira (e latino-americana) não soube lidar com essa acusação armada meticulosamente pelas elites.

Negar com veemência esse discurso, dizer claramente que corrupção é um problema global e administrativo, não uma questão de política pública, que é uma névoa que encapela as barbáries do sistema vigente – fome, desemprego, injustiça social, expropriação de direitos trabalhistas e de amparo social, perda crescente de soberania – excluiria do debate as vozes que, por mais influentes que sejam no mundo acadêmico e midiático, perpetuam esse naipe de discurso com intenções conservadoras ou reacionárias. Para utilizar um termo da moda, das redes sociais, urge “cancelar” essas vozes, não dar respaldo ou acolhimento, por mais lustro que o currículo pessoal mantenha junto à opinião pública.

Relacionar as práticas privadas à corrupção, invertendo a atual concepção, é outro caminho possível. Apontar a sonegação, a transformação do setor público e das estatais em balcões de negócio, culpabilizar o privatismo pela ineficiência de serviços, aliar esse discurso a um nacionalismo econômico e a um ensejo de independência e soberania, já foi algo feito em outros tempos e é uma opção de resistência e conscientização.

Retomar discursos que relacionam corrupção a desenvolvimento, como nos anos 60 (Huntington, por exemplo), ou dar visibilidade a pesquisas que negam a corrupção como obstáculo ao desenvolvimento, são outros caminhos. Em 2015, Chiung-Ju Huang, da Universidade Feng Chia, em Taiwan, publicou um estudo aplicado a Coréia do Sul e outros países do Sudeste asiático, que mostrou que a corrupção não fez mal algum para o crescimento econômico desses países, contrariando o senso comum. Mostrar que os recursos destinados ao combate à corrupção poderiam ser aplicados em áreas como saúde, educação, redistribuição de renda. Mostrar que esse combate favorece certos interesses privados em detrimento dos interesses mais amplos da sociedade. Enfim, combater o processo de demonização que transformou a corrupção no principal problema político do País.

Esvaziar a importância, culpabilizar o inimigo, minimizar a acusação. O principal combate à corrupção é a luta contra a sua primazia no debate público. Talvez (e só talvez) esse discurso anticorrupção não encontre o mesmo respaldo em 2022, como tanto deseja e vem tentando a mídia. Mas, mesmo o superando nas urnas, o estrago a longo prazo é evidente e precisa ser revertido. A própria sobrevivência democrática dependerá disso.