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"Nenhum lugar do mundo reduziu desigualdades com políticas neoliberais", diz ex-secretário nacional de Segurança Alimentar

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Imagem do site Recontaai.com.br

Duas datas importantes marcaram a semana: o Dia Mundial da Alimentação (16/10) e o Dia Internacional da Erradicação da Pobreza (17/10).

No entanto, o Brasil tem pouco a comemorar em relação aos dois tópicos. A Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio Contínua (PNADC), divulgada nesta semana pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), mostrou a diferença entre ricos e pobres.

Segundo o IBGE, a diferença entre os rendimentos obtidos pelo 1% mais rico e dos 50% mais pobres no ano passado é recorde na série histórica da PNADC, iniciada em 2012.

Contraste entre apartamentos de luxo no Morumbi e a favela de Paraisópolis, em São Paulo. iStock

A pesquisa aponta que a desigualdade aumentou porque o rendimento real do trabalho da metade mais pobre caiu ou subiu bem menos do que o dos mais ricos, sobretudo nos últimos anos.

Para analistas, além da questão do emprego, existe um fator importante: a diminuição dos domicílios atendidos pelo Bolsa Família, de 15,9% no total do País em 2012 para 13,7% em 2018.

A importância do Bolsa Família

O Bolsa Família é um programa de transferência de renda criado em 2003. Para além da ajuda financeira, o programa revolucionou diversos aspectos das famílias brasileiras, já que trouxe em suas condicionantes o acompanhamento escolar e de vacinação das crianças.

O programa chegou a render para o Brasil um prêmio conhecido como Nobel Social, o Award for Outstanding Achievement in Social Security, em reconhecimento ao sucesso do Bolsa Família no combate à pobreza e na promoção dos direitos sociais da população mais vulnerável do Brasil. Ele foi entregue na Suíça, em 2013.

Segurança alimentar é fundamental

É impossível falar em diminuição da pobreza e desigualdade social sem mencionar segurança alimentar, que consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais.

E para relacionar esses tópicos interligados, o Reconta Aí conversou com o economista Arnoldo Campos, que foi secretário nacional de Segurança Alimentar durante o governo Dilma Rousseff.

Campos fala sobre a questão do aumento da pobreza, liberação de agrotóxicos, distribuição de renda e emprego.

2015. secretario Arnoldo Campos da Secretaria Nacional de Seguranca Alimentar e Nutricional do MDS. ©Ubirajara Machado

Diminuição do Bolsa Família aumenta as desigualdades

Reconta Aí – A PNAD divulgada nesta semana mostra que a diferença entre o 1% mais rico e os 50% mais pobres da população é recorde na série histórica. Muito disso, segundo os pesquisadores, tem a ver com a precarização do trabalho. Mas a diminuição dos atendidos pelo Bolsa Família foi fundamental nesse processo de empobrecimento. Você concorda com essa afirmação?


Arnoldo Campos – Esse movimento não pode ser explicado por uma ou duas variáveis apenas, embora elas façam parte da explicação. Na verdade, é um conjunto de fatores que tem a ver com o modelo de desenvolvimento que está em curso no país, a partir do golpe contra a presidenta Dilma e da prisão do presidente Lula.

A política econômica neoliberal, anti-nacional e anti-desenvolvimento, a redução dos recursos e precarização das ferramentas de proteção social e trabalhista, a redução do orçamento e das ações na área social, o desmonte das políticas de proteção e fortalecimento da agricultura familiar explicam melhor os resultados negativos que se vem observando em diversos indicadores sociais.

E a PNAD desta semana é mais uma medida coerente com as mudanças que foram promovidas desde o governo Temer e amplificadas ainda mais pelo atual governo.

Agricultura familiar é fundamental para a segurança alimentar e o combate à fome

Onde o Brasil se perdeu

Reconta Aí – Sabemos que muitos fatores contribuem para esse aumento expressivo da desigualdade e da pobreza no Brasil. E sabemos também que isso gera um resultado cruel na mesa dos brasileiros. Nesta semana, foi celebrado o Dia Mundial da Alimentação e tivemos esses números catastróficos. Muito foi feito na época dos governos democráticos e populares. Onde o Brasil se perdeu? E o que precisa ser feito pra que esse quadro mude?


Arnoldo Campos – A orientação geral do governo atual, da maioria do Congresso Nacional e até de parte importante do Judiciário vai nesta direção de retirar políticas, programas e ferramentas de proteção e promoção social. A própria orientação da política econômica é pró-concentração, sem mecanismos ativos de promoção do desenvolvimento e redução das desigualdades. Nenhum lugar do mundo reduziu desigualdades com políticas neoliberais.

A segurança alimentar de qualquer país depende muito de políticas e programas voltados para a proteção das camadas mais vulneráveis e empobrecidas da população. Não se trata de falta de alimentos: é falta de renda e de acesso a alimentação por uma parcela da população que está desempregada e desprotegida, sendo precarizada social e economicamente.

O problema dos agrotóxicos


Reconta Aí – A questão dos agrotóxicos também é um fator de insegurança alimentar. Só neste ano, o governo do presidente Jair Bolsonaro liberou 290 novas substâncias. Como isso reflete na alimentação do brasileiro?


Arnoldo Campos – É uma miopia, uma falta de inteligência, não só do ponto de vista social e da segurança alimentar, o que já seria grave. É também um equívoco econômico. A produção limpa, sustentável e saudável é uma exigência crescente da cidadania e que vem se refletindo fortemente entre os consumidores provocando mudanças nas estratégias de todas as grandes, médias e pequenas empresas integrantes dos sistemas alimentares no Brasil e no mundo.

Só neste ano, governo brasileiro liberou 290 novos agrotóxicos, muitos deles são proibidos nos próprios países de fabricação

Quem não entender que os consumidores estão mudando estruturalmente o seu comportamento em direção a uma alimentação mais saudável e sistemas produtivos mais responsáveis e que não contribuem para a crise climática, vai ficar para trás, vai perder espaço no mercado.

Mas o maior dano mesmo é junto aos consumidores, que ficam totalmente desprotegidos em relação a utilização irracional de agrotóxicos, contaminando alimentos que chegam à mesa dos brasileiros e também de quem compra os nossos produtos em outros países.

Existe esperança para o futuro?


Reconta Aí – Você acredita ser possível reverter futuramente esse quadro de insegurança alimentar e aumento da pobreza que novamente tomou conta do nosso País? Existe esperança para o futuro?

Arnoldo Campos – Infelizmente, é muito mais fácil destruir que construir. O Brasil vinha evoluindo desde a redemocratização, deu passos importantes com a Constituição de 1988, com a estabilização monetária e desde então vinha evoluindo até que se chegou aos governos do presidente Lula e da presidenta Dilma, que aceleraram muitíssimo o desenvolvimento social e a segurança alimentar no País.

É um período de retrocessos que já começa a ser percebido pela maioria da população e deve ser revertido nos próximos anos. O que não se sabe ainda é a dimensão dos estragos que vão ser produzidos até que esta gente que comanda o país hoje seja afastada. Até lá muita gente vai sofrer as consequências do atual modelo de desenvolvimento que está sendo implementado no País, que não é para todos, como vários assumem descaradamente na atual gestão.