“A ordem era respeitar os cachorros. Foi um tempo difícil para os puros, os ingênuos, os de boa memória”.
(José J. Veiga, A Hora dos Ruminantes)
Sobrevivemos à noite escura, encaramos os destroços do dia. Para cobrar a reconstrução, é preciso não apenas ter em mente nosso passado enraizado na exclusão, mas também os riscos mais recentes. Este tempo em “que as grandes massas já não acreditam no que antes acreditaram”, e que nos levou a um pesadelo. Escapamos eleitoralmente do crime organizado, do fascismo. Mas essa gente passou os últimos anos saqueando o patrimônio público, promovendo a morte das instituições e do tecido social, deixando granadas pelas esquinas e, pior, continua resistindo. A guerra não acabou.
Vencer nas urnas o poderio econômico, político, midiático e moral do fascismo foi uma façanha. Sempre esteve claro que seria o primeiro passo. Devemos manter a memória dos tempos recentes, evocá-los a cada revelação de crimes não fiscalizados, coibidos, criminalizados e que prosseguem, como reação do lado que perde terreno.
Sem apoio total de fardados e togados, sem anuência e participação norte-americanas, como em 2016, o golpe não viria, apesar das ameaças dos ruminantes em quarteis, templos, redes sociais, nas reuniões de família de classe média, nos conluios do agro, nas rodas de bem nascidos ou na Bovespa. A tentativa estapafúrdia do 8 de janeiro só estampou a essência bolsonarista para toda a sociedade, inclusive para o STF, acelerando providências para uma retomada do Estado de Direito.
Os limites ainda são imensos e vão bem além dos mugidos e chifradas da boiada que vandalizou as casas do poder em Brasília. O novo governo vai ter de contar com a colaboração do STF e de uma futura PGR para não estancar o combate ao golpismo declarado. Terá de combater a privilegiada noção de “liberdade” que afronta a Constituição e os Direitos Humanos. E, mais complexo, a coalizão vencedora precisa de consenso entre forças políticas, o que demanda repartição de cargos e convívio de ideias opostas sobre o papel do Estado, o desenvolvimento, políticas sociais e econômicas.
Até aí, são obstáculos que, para serem superados, o governo contará por vezes com apoio dos cães de guarda da elite. A mídia corporativa assimilou a derrota, o retorno petista e a gravidade da peste que engendrou. Pela primeira vez, militares (parece) serão julgados. Uma reforma tributária sairá do papel. Até a redução da pobreza, o combate à fome e os programas redistributivos contam com o aval do mercado e da mídia (o recurso de separação foi para o entendimento formal, não são entidades distintas).
O embate – a verdadeira resistência, que incluirá contra-ataques – se dará nas reestruturações das estatais, das relações entre trabalho e capital, da primazia da produtividade sobre ganhos especulativos e, em menor escala, na reconfiguração das relações internacionais. E é em cada um desses campos que se mostram nossos limites. Os passos vão sendo dados com cuidado, com trabalho de convencimento da opinião pública, inserindo vozes menos identificadas com o PT em cada debate, mas mantendo as vozes mais petistas apontando as mazelas estruturais; expondo como mentiras o que até hoje eram verdades naturais para a mídia; atacando o que antes era intocável, mas voltando ao tom conciliatório quando necessário. Vão se tomando posições na sociedade, angariando mais gente para o seu lado. Uma guerra de posições que será longa até se alcançar um discurso contra-hegemônico. Termos como “Estado”, “privatização”, “direitos”, “desenvolvimento” e até “política” precisam alterar seus significados no senso comum. Há que se transformar o senso comum. E as parcelas da opinião pública angariadas, cooptadas ou engajadas funcionarem, com o tempo, como a maioria da sociedade.
Foi assim que se procurou desarmar uma das bombas plantadas durante o golpe, Roberto Campos e a autonomia do Banco Central. Enquanto analistas da mídia gritavam a seu favor, os ataques públicos de Lula mostraram o absurdo e a crueldade intrínsecas da política de juros. Quando o conflito parecia iminente, a postura moderada do ministro da Fazenda em prol da “responsabilidade fiscal” apaziguou a contenda. Mas essa dubiedade certamente garantiu uma queda dos juros na próxima ação do BC, já que se conseguiu a proeza de dividir o setor industrial, a mídia e os atores políticos nessa questão. Ataca-se a independência do BC, como cabe à esquerda progressista, alcança-se a diminuição dos juros e condições para investimento na produção.
É uma guerra, e o modus operandi é o de pequenos avanços territoriais. Luta-se contra membros da iniciativa privada, do capital externo, do Exército, do crime organizado e da elite predatória na região Norte, mas o foco é só proteger os yanomamis. Antes de se planejar nova reforma trabalhista, um bom gesto é o de expor e criminalizar o trabalho escravo em empresas privadas. Para reformular o agronegócio, limite-se ações dos proprietários com a lei, reativem-se órgãos fiscalizadores. Para fortalecer BRICS e Mercosul sem maiores interferências, mantém-se o discurso pela paz e relações com o Império, que também se vê às voltas de um combate contra o obscurantismo interno.
Tudo o que cerca a Petrobras envolve ainda mais riscos de reacender interesses no retrocesso. Todas as soluções envolvendo soberania energética, retomada do desenvolvimento e um papel social que era fundamental para nossa industrialização envolvem o fim do PPI (preço de paridade de importação), retomada de refinarias e uma remodelação profunda do modelo que impera desde Temer e Pedro Parente. Antes, no entanto, era preciso desarmar a bomba eleitoreira da desoneração – e há aqui mais uma vez o argumento do rombo nas contas públicas, do qual Haddad habilidosamente lança mão sempre que pode. Depois, ainda, a renovação do Conselho de Administração. Os incomodados serão acionistas, especialmente estrangeiros, donos dos vultosos dividendos, e mais de 400 empresas que hoje importam gasolina para revenda. A grita será mais uma vez sentida. Mas é, além de tudo, algo anunciado em campanha. E virá.
A dança lenta e circular, bolero sem fim, é imprescindível para fortalecer politicamente um governo de esquerda que ganhou uma eleição por pequena margem de votos, sem maioria no Parlamento (talvez o pior de todos os tempos), sem os governos dos Estados mais ricos da Federação, sem a aprovação (!?) militar… É certo que teve mais apoio popular do que as forças mais retrógradas de nossa história, mas estas não se resumem à laia bolsonarista. Há os beneficiados pelo golpe, pelas desregulamentações de Temer, pela política econômica de Guedes… É preciso manter a estabilidade de um governo que chegou questionando, na figura de Lula e do PT, toda a desigualdade estrutural secular que nos impõe a sobrevivência nas margens, a dor da exclusão e da pobreza.
Não se reconstruirá o país com canetadas e bravatas. Muita coisa foi feita em dois meses de trabalho. E os caminhos apontados são os prometidos. A hora dos ruminantes parece ter passado, mas séculos de atraso e vícios persistem vivos: temos uma elite que sempre pode se aliar às matilhas e às boiadas.