A equipe de transição encontrou os rombos que imaginava no orçamento, talvez maiores do que se esperava. Além de tomar ciência do estado da arte, fez-se necessário o início de acordos políticos para gastos essenciais e emergenciais, compromissos de campanha. Ao mesmo tempo, indicações de equipe econômica para o futuro governo agitaram a mídia, que apresenta um comportamento já conhecido, mas que pode parecer inusitado.
Ligamos a tevê na principal emissora e um cenário de tranquilidade republicana dá as costas para bloqueios de estradas, manifestações em portas de quarteis, galinhas verdes marchando e um desespero insano de quem viu todos os crimes eleitorais (e pós-eleitorais) possíveis serem perpetrados fracassarem. Uso eleitoral da máquina e do orçamento públicos, intimidação de eleitores, policiais rodoviários impedindo a votação e incentivando bloqueios, policiais militares e milicianos ameaçando petistas na entrada de colégios eleitorais, uma fábrica de mentiras acionada em milhares de cultos evangélicos e milhões de mensagens em aplicativos, intimidação de trabalhadores por parte de seus patrões, demissões e até assassinatos.
Enquanto todos os crimes permanecem impunes, a mídia exerce o papel de autoridade. Com aparentes responsabilidade e engajamento, ridiculariza os pedidos de intervenção militar. Pela primeira está liberado usar os termos “extrema direita” e “fascismo”. Os jornais dão seguimento a uma ordem institucional que se pretende restabelecer. Ao mesmo tempo, apagam o passado com celeridade. O presidente Lula é retratado com respeito e toda a consideração que seu cargo legítimo impõe, deputados e senadores petistas desfilam na Globo como se fossem habituês, a “democracia” voltou como em um passe de mágica, militares e membros do governo ainda vigente são espezinhados como nunca. Nada aconteceu nos últimos seis anos.
Essa dança de acasalamento entre a principal emissora do País (e que, aos poucos, enamora também as famílias “concorrentes”) deixa transparecer seus desejos de controle. Antes de tudo, quem ganhou a eleição foi a Democracia, jamais um partido e nem a memória de seus governos. Todo e qualquer aliado da primeira à última hora, seja um deputado do Centrão ou um destaque do PSOL, possui mais importância para a vitória de Lula do que sua estrondosa votação, alcançada contra todo o establishment. Conciliação virou sinônimo de manutenção de uma ordem liberal, as alianças se tornaram a garantia de uma política econômica que não quebrará expectativas do mercado.
Tudo o que não foi questionado até quinze dias atrás, como despesas eleitoreiras que estouraram o teto de gastos, verbas públicas tornando-se particulares e dirigidas a amigos e parentes. a verdadeira compra de votos no Legislativo que foi o orçamento secreto, a ausência de transparência em dados e gastos públicos – tudo agora se resume a problemas que devem ser cobrados de imediato do próximo governo, como práticas insuportáveis desde sempre. Como se jamais fossem normalizadas pelos próprios noticiários.
A volta e a vitória da política logo no início do processo de transição, com a aparente expansão da aliança e o crédito de pelo menos 200 bilhões, seja por autorização do STF ou por PEC, já assusta os analistas de sempre, que observam a importância da balança fiscal e ameaçam críticas à “licença para gastar” do novo governo. Até mesmo o fim do orçamento secreto e do teto de gastos parecem bem viáveis no momento, além de novos acordos sugerirem que o governo está próximo de uma maioria no Congresso. Para além da volta do Bolsa Família, agora de R$ 600 e acréscimo por cada filho, o reajuste do salário mínimo deve ser anunciado logo no início de janeiro. A verba da PEC também deverá garantir a retomada de obras paradas e a liberação de verbas para merenda escolar, outra urgência apontada na campanha (mais do que pela mídia nos noticiários).
Os mesmos comentaristas que apontavam os números de recuperação da economia dirigida por Paulo Guedes agora alertam que o Brasil está quebrado e não há dinheiro para gastos. E exigem saber de onde virá o dinheiro, com um nervosismo mais acentuado do que quando das manobras de emergência eleitoral do ainda mandatário.
O namoro será curto. Durará até que os fanáticos da classe média saiam dos muros de lamentações dos quarteis, até os primeiros financiadores de caminhoneiros e os primeiros vigilantes rodoviários serem indiciados. Logo de cara o governo sentirá a pressão da própria esquerda, seja na composição dos ministérios ou na grita por uma rasteira na política monetária (que não virá). Do outro lado, enfrentará dois pontos nevrálgicos, a questão da Petrobras e da reconstrução estrutural e política de órgãos públicos de financiamento. Em breve desagradará quem declara o temporário armistício e tenta moldar um governo com diretrizes anunciadas de fortalecimento do Estado e retomada do desenvolvimento.
Até aí, falamos de realidades já vivenciadas e conhecidas. Mas desta vez, paralelamente, o governo petista enfrentará uma rede de atores políticos e de comunicação já formada, financiada, que não cessará suas atividades fora do poder federal. Vários governos estaduais e municipais, representantes no Legislativo, expoentes da mídia, membros de forças de segurança e do Judiciário hoje alimentam uma extrema direita que já demonstrou capacidade de atração popular e, mais do que isso, a habilidade em conjugar esforços com setores moderados e mesmo parte do chamado “progressismo” para desestabilização de governos. A disputa pelo poder – e pela continuidade de valores já disseminados como positivos, como o privatismo, a liberdade empresarial, a redução do Estado – não irá dar trégua. As pautas morais e o estigma de corrupção impingido pelo complexo midiático serão cartas na manga de manchetes e manifestações. Some-se a isso o fato de um governo petista nunca terá canais de comunicação para veicular ideário, atos e fatos.
Os desafios são maiores. O alívio foi grande, e aos poucos se assenta. A tensão voltará em breve.