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O Mito, o Mercado e o Povo de Jó

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Imagem do site Recontaai.com.br

Numa terra lá no fim do mundo, muito populosa (a maior parte das pessoas mora no fim do mundo), havia um país chamado Jó. Era como todos os outros no fim do mundo: alguns faraós, poucas castas intermediárias e uma massa enorme de escravos. Mas, por um curto momento, um pequeno lapso no tempo, embora não se tornasse um país do topo do mundo (são poucos os países no topo), Jó foi perdendo a cara de fim do mundo. As pessoas trabalhavam, comiam, estudavam e os que passavam dificuldades sérias (as que o cume do mundo não conhece) eram ajudados pelo governo a ter, aos poucos, mais dignidade em suas vidas.

Mas isso durou um átimo de segundo da história de Jó, pois havia as pessoas de bem, que sabiam o lugar de Jó neste mundo. Logo houve uma correção de curso para que as coisas voltassem ao seu devido lugar.

No centro desta salvação, estavam dois deuses de Jó, o Mito e o Mercado. O Mito até tinha um aspecto familiar ao povo de Jó, falava a língua média da população e, embora usasse fraldas, era respeitado como o salvador de Jó. Já o Mercado aparentava ser importante: apesar da caspa no terno e dos modos nervosos, possuía uma Mão poderosa e um linguajar do topo do mundo. Todas as pessoas importantes de Jó falavam bem do Mercado, e ele era também respeitado pelos Tesoureiros do Cume do Mundo.

A aposta do Mito e do Mercado

Um dia Mito e Mercado se encontraram e fizeram uma aposta. Mercado achava que não daria para Jó voltar rapidamente a ser a terra ideal, imaginada em suas tradições e nos melhores hinos oficiais, que seria difícil o retorno ao Paraíso depois do breve e perverso sonho de grandeza. Afinal, o povo de Jó teria uma memória recente, os anos enganosos, onde tudo caía do céu e os mais ricos eram sacrificados… Eles não saberiam o seu lugar no mundo, estavam confusos em relação a isso. O Mito respondeu que era bobagem, que Jó era um povo familiar, conservador, ordeiro, temente ao Mito e ao Mercado, tão servil como o melhor gado que já existiu. O Mercado duvidou. Mas o Mito apostou que tudo daria certo.

Aos poucos, direitos foram retirados. As grandes áreas de produção de Jó, que garantiam empregos e dinheiro para novos investimentos e redistribuição de renda por parte do Estado, foram destruídas. Grandes empresas estatais foram sendo sucateadas e vendidas. O Estado foi passando a cuidar apenas da vida moral em Jó. O que era certo, o que era errado. Locais de estudo e de tratamento médico só davam despesa ao governo de Jó, então aos poucos foram passando para as mãos de quem estava no topo, que saberia fazer dinheiro com escolas e hospitais. Aos poucos o povo de Jó voltou a se acostumar com o desemprego, a parca comida, as doenças e a penúria.

Mas o povo de Jó não se revoltou: os sábios daquela terra asseguravam à escumalha, dia e noite, que Jó estava se modernizando. Que todos se sacrificavam para que o governo tivesse Responsabilidade Fiscal. O povo de Jó não sabia o que era a tal responsabilidade, mas entendia que seu prato vazio e a sua falta de emprego e renda era uma coisa boa, que era um sacrifício pela modernização de Jó. Diuturnamente, os Arautos do Topo – templos, rádios e telejornais de Jó – lideravam uma prece. Não aos céus, mas ao teto de gastos, que é bem parecido. Tá lá em cima.

Sou Agro, sou meu próprio patrão

As pessoas entenderam que agora todos eram seus próprios patrões, dependiam só de suas forças para sobreviver, e só os melhores se destacariam (homens brancos e esbranquiçados bem nascidos tinham vantagem como sói ser, por merecimento, mas isso só era dito em último caso). Bastava trabalhar e se sacrificar pelo Mito e pelo Mercado. Cada um aprenderia a pescar seu próprio peixe. A Era do Pecado e da Irresponsabilidade, onde havia a ignomínia de chover empregos e maná, havia acabado.

Jó se transformava em um grande celeiro, mantendo grandes pastos e plantações. Alguns pensavam até em mudar o nome do país para Agro. O Mercado reclamou que o Agro era feito para gerar mais e mais dinheiro. O Mito fechou seus olhos mortos e toda a comida foi vendida para as terras do topo. Mas o povo de Jó suportou também a comida cara e rara, pois o Mito explicou que as novas regras eram essas, só pode quem tem, e os telejornais festejavam o Agro. O Agro era vida, o Agro era tudo, o Agro era pop. A maioria não sabia o que isso significava, mas sabia que era bom e certo. E as imagens eram bonitas.

Foi quando o Mercado justificou sua aparente derrota com um argumento: eles estão saudáveis e mal lembram da morte. O Mito sorriu enquanto coçava uma falsa ferida. “Vem aí uma praga, e eles também irão suportar”.

Vinho, festa, aglomeração

A peste chegou, e os mortos se amontoaram aos milhares. Mas o povo de Jó não se escondeu, como os tolos covardes e antiquados pregavam: espalhou a sua presença como um vírus, em busca de sustento ou festejando nas ruas números criados pelos seus líderes. O Mercado mais uma vez reclamou, com suas mãos ávidas e os olhos errantes por trás dos óculos: “ainda caímos no vício dos demônios anteriores. Essa gente ainda não se esqueceu das benesses do Estado”. O Mito autorizou a cortá-las lentamente, primeiro pela metade e depois em definitivo.

Quem discordava do Mito ou do Mercado, ou ainda tinha lembranças torpes de velhos tempos, era massacrado pelos Guardiões, fardados ou não, ou silenciados pelos Arautos que espalhavam a boa nova nas rádios e tevês. Alguns dos mais revoltados eram absorvidos, recebiam um soldo e fingiam críticas ao Mito, contanto que não desrespeitassem o Mercado. As leis antigas eram tripudiadas e manuseadas ao bel prazer, e se adaptavam ora ao Mito, ora ao Mercado, alternadamente. E assim forjou-se uma falsa oposição, que causou boa impressão e cumpriu a missão de normalizar as aparências. O Mito fingia oscilar, mas sempre se recuperava. O Mercado, agradecido, passou a instaurar com fúria a antiga ordem. Hoje confia mais no Mito, que entende cada vez mais os dilemas espirituais do Mercado.

E foi assim que Jó voltou ao seu devido lugar, com seu povo consciente de seu papel na história da humanidade. O Capital e seus direitos, o Trabalho e seus deveres. O topo do mundo regozijou-se com Jó. E os faraós embalsamados de Jó sorriram ao ver seus escravos tão mansos. Todos marcados, todos felizes.

E esta pequena parábola não acredita na reparação de Jó. Seu povo não ganhará nada de volta, pois a esperança foi aprisionada e calada. E seu humilde escriba sabe que não há reparação ou esperança que fuja do Mercado.