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O cínico “Basta!”: o impeachment e a hora dos juízes penitentes

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(…) Devo estar contando isso com a alma cortada
Em algum lugar, há uma distância de tempo imensa:
divergiam em um bosque duas estradas
e eu escolhi a menos viajada
e esta escolha fez toda a diferença.
(Robert Frost)

Muito temos nos inconformado sobre a passividade social. Mesmo padecendo sob o jugo de grandes injustiças, descasos, pobreza, doença e fome, nada parece se alterar. Adorno dizia que o homem do pós-guerra viu destruída sua capacidade de resistência coletiva, tornou-se passivo e manipulável pelo poder da autoridade e o seu discurso. Sem grandes emoções, sem capacidade de reflexão, sempre protegendo seus interesses individuais e garantindo os seus limites, mesmo que estes não pareçam esboçar algo como “vida”. “Consciência coisificada” é o termo do autor para definir essa massa amorfa.

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Embora a descrição seja precisa, a temporalidade apontada não nos faz jus. Somos habituados à opressão e às necessidades, às desigualdades e às justificativas elaboradas sobre a nobreza das castas. Apenas tivemos um curto recesso durante os governos petistas. Mas quase sempre suportamos a desgraça nos ombros e em silêncio.

E, surpresa, eppur si muove. Há uns dias nos anunciam que estamos próximos da gota d’água. E parece que realmente, desta vez, o fim está a vista. Descobriu-se que é hora de dar-se um “Basta”!

É por hábito de ofício que cito pesquisas, já que são elaboradas pelo mesmo complexo midiático que fabricou a Lava-jato, o golpe e Bolsonaro. Mas, por algum motivo tácito, possuem mais credibilidade do que as notícias da mídia, como se não fossem mais um instrumento de conformação e manipulação do real. Mas vamos lá, até as pesquisas mostram que o presidente está “derretendo”, para usar o verbo da moda.

Mais que isso, os antigos propagadores de que Bolsonaro era o melhor caminho – afinal, era preciso “tirar o PT” – ganharam espaço crescente na mídia, manifestando-se em prol de um impedimento legal, parlamentar e, certamente, espetacular. Do criador do termo “petralha” a comentarista econômica que ninguém lê, do youtuber que se tornou influencer político a editoriais da elite mumificada de Piratininga, de promotores malandros da Lava-Jato a campeões da democracia do Jornal Nacional: todos têm a mesma missão. Tais quais juízes penitentes, devem defender abertamente a queda do candidato que criaram e, ao mesmo tempo, arranjar formas de continuar com a marginalização do PT. Não é preciso muita coerência, apenas a repetição. Afinal, como diria Benjamin, anos antes dos campos de concentração que motivaram o pasmo de Adorno, “somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações”. Basta o discurso e as condenações serem repetidos à exaustão, com a chancela intelectual do topo da pirâmide. Há tempos este é o principal mecanismo para a coisificação, para a bestialização coletiva e para a ausência de consciência do local que se ocupa na sociedade.

Mas as estradas para esse impedimento devem passar por um crime. O que chega a ser hilário, já que o presidente em questão cometeu crimes às pencas desde que iniciou sua carreira pública, aliás, desde que esteve no Exército. Todos sobejamente conhecidos, que o tornaram uma escolha mais palatável (embora “difícil”) para ser vendida ao público. Também sabemos que não seria tão necessário acusá-lo de algum crime: a mesma mídia, junto à elite, comandou um impeachment sem crime algum recentemente. Mas é preciso divulgar uma justificativa. A condução do governo no combate à pandemia deverá pagar essa conta, ao que parece.

A estrada do impedimento, embora já trilhada, será pedregosa desta vez. A resistência dos militares, a vice-presidência fardada (e “brilhante” como o patético Pazuello), o dinheiro e os cargos a serem gastos até chegarem ao número de ouro que garanta a votação, a permanência dos principais objetivos da equipe econômica… O principal obstáculo é que há muita gente a ser retirada de seus cargos atuais para uma aparência de mudança efetiva.

Nem de longe este texto procura relevar a necessidade de afastar do poder a nossa vergonha. Somente não deixa de alertar que os juízes que decidiram pelo veredito da miséria brasileira são os mesmos que, sem corar, tentam organizar uma saída honrosa, voltar a trilhar uma estrada conhecida. E que isso não resolverá boa parte de nossos padecimentos.

Para não dizer que aqui não se aponta outros caminhos, há uma estrada que removeria mais elementos hoje presentes no governo e que partiria de um crime realmente inimaginável, com uma paisagem mais original. Mas trilhá-la afetaria muitos atores sociais: policiais, médicos, classe política, juízes e, principalmente, o meio jornalístico. Talvez alguns achem que essa estrada se aproxime do Juízo Final, mas certamente envolveria um crime e justificativas menos cínicas para o impeachment. E, como diria o juiz Clamence, personagem de “A Queda” de Camus (de onde saíram ideias e expressões deste texto): “Vou lhe contar um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias”.

Tomem uma estrada legítima, que redima uma farsa e demonstre alguma coragem, algum princípio.

Elucidem a facada.