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Nicolelis: "É a pior hecatombe que o Brasil já se defrontou na sua história"

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Imagem do site Recontaai.com.br
Pedro Sibahi/Agência PT

Doutor em medicina pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da universidade de Duke (EUA), Miguel Nicolelis foi entrevistado pelo Reconta Aí – por telefone – na mesma semana em que o vídeo da  campanha ‘O Brasil não pode parar’, do Governo Federal, chegou a ser compartilhado em redes sociais. O vídeo defendia a flexibilização do isolamento social e a retomada de atividades em meio à pandemia do novo coronavírus.

“Eu acho que nesse instante, a única esperança do Brasil é que os governadores dos estados passem a tomar providências necessárias. A hora que isso explodir de vez aqui, no Brasil, vai ser algo que nunca experimentamos na nossa história”, enfatiza.

Nicolelis adverte sobre a necessidade de esclarecer a população e mostrar o quanto é contraproducente e “quase um ato criminoso” abandonar o distanciamento social durante a pandemia do novo coronavírus. 

Reconta Ai – Como avalia o discurso do presidente Jair Bolsonaro, que pede o fim do isolamento e defende a volta ao trabalho?

Miguel Nicolelis – É mais uma atitude, uma postura que expõe a total falta de preparo desse senhor para liderar um País, do tamanho do Brasil, na maior crise sanitária do últimos cem anos.

Já estamos passando a meio milhão de casos no mundo; os Estados Unidos vão chegar a cem mil casos nas próximas horas. O Brasil é o próximo epicentro e, criar uma propaganda massiva de mídia para fazer a população sair de casa e começar tentar chantagear a população, ameaçando uma greve de caminhoneiros que pode levar a um desabastecimento alimentar no País, é inconcebível, inaceitável, é assustador.  Não tem nenhum paralelo no mundo, nesse momento.

Reconta Ai – E o que a gente pode fazer para que isso não caia no senso comum? Como temos que agir?

Miguel Nicolelis – O que temos que fazer é tentar esclarecer a população e apelar para o Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF) e outras instituições criarem vergonha na cara, criar algum tipo de coluna vertebral e começar a agir porque primeiro, esse indivíduo não tem menor condições de continuar no cargo que ele ocupa. Você está pondo em risco centena de milhares de vidas de brasileiros. E se o grande número da população, essa porcentagem enorme de brasileiros forem contaminados nessa primeira onda – que não vai ser a última, é só a primeira – vamos ter um caso histórico, um momento trágico histórico, com centenas de milhares de mortos no Brasil nos próximos seis, oito meses. 

Então, algo tem que ser feito em nível nacional e o que a gente pode fazer, enquanto indivíduo, é tentar esclarecer as pessoas e mostrar que é absolutamente contraproducente e quase um ato criminoso abandonar o distanciamento social porque no Brasil, nesse instante, é a única ferramenta eficaz para tentar diminuir o número de contaminados.

As pessoas não estão entendendo que vamos chegar perto do inverno daqui a pouco e os casos de gripe, outras doenças infecciosas respiratórias vão começar a aumentar. E a confluência desses casos, com os casos do coronavírus, vão levar ao colapso do sistema de saúde. É inevitável então termos que diminuir o máximo o número de contaminados para evitar que o sistema de saúde não de conta. Porque aí você começa a ter mortes secundárias e não só a contaminação, mas a falta de capacidade operacional do sistema de saúde. 

Reconta Aí – O sr. tem uma previsão de quantos infectados podem ter nas próximas semanas no Brasil?

Miguel Nicolelis – Os números no Brasil não são confiáveis; então, esse número oficial talvez possa se multiplicar até por dez vezes. Eu acredito que até um pouco mais, nessa altura do campeonato. Nós estamos notando – vários colegas que estão se comunicando – que o número de notificações de óbitos, em São Paulo e Rio de Janeiro, que relacionam doenças respiratórias – pneumonia, insuficiências respiratórias –  têm aumentado dramaticamente. Quase seis vezes em março, em comparação com o mês anterior. 

Em nenhuma dessas notificações você vê a palavra coronavírus, porque não há testes suficientes para testar as pessoas que faleceram. Então, esses óbitos entram na categoria de doenças respiratórias ou causas respiratórias mas, provavelmente, um número delas, alto, pode ser por causa do coronavírus. Então, a subnotificação – o Ministério da Saúde colocou outro dia em 86% – estou  achando que esse número é maior, talvez seja 10 a 20 vezes o subnotificado. 

Eu acho que nas próximas semanas a situação vai ficar dramática aqui, muito parecida com o que aconteceu nos Estados Unidos, onde o governo Trump negou, diminuiu, fez lorota, fez gozação da epidemia e hoje Nova Iorque está chegando a 40 mil, 50 mil casos.  Num único hospital que conheço em Nova Iorque, faleceram 13 pessoas numa noite. E isso, para os padrões americanos, é uma explosão. O governador do estado de Nova Iorque e o prefeito da cidade estão dizendo que Nova Iorque pode entrar em colapso, do ponto de vista sanitário, nos próximos dias. E se isso está acontecendo em Nova Iorque, imagina nas capitais brasileiras, daqui duas, três semanas.

Reconta Aí –  O sr. propõe algum tipo de medida?

Miguel Nicolelis – Sim, é por isso que defendo a criação imediata de uma comissão nacional de combate à pandemia para centralizar e coordenar os esforços dos estados, dos municípios; coletar dados de maneira confiável para disseminar essas informações, de vizinhança por vizinhança, de cada um dos 5 mil municípios brasileiros; para coordenar os esforços de redirecionamento do parque industrial, coordenar a distribuição de insumos e equipamentos que serão necessários. Sem você ter o mapeamento preciso de onde estão os focos, que estão explodindo no País, você não tem como dimensionar os insumos e equipamentos. Então, quer dizer, não estamos fazendo absolutamente nada para combater o que claramente é uma guerra biológica e talvez o evento mais catastrófico da história do Brasil. 

Veja, se nós tivéssemos começado a trabalhar três meses atrás com esse cenário em mente, se o governo italiano tivesse pensado nisso, e não debochado da crise na China e feito troça da gravidade da situação, hoje o norte da Itália não estaria do jeito que está. Então, é algo que  as pessoas não se dão conta que mesmo num país como o Brasil, o número de mortes, como esse, numa cidade de São Paulo, ou Rio de Janeiro, ou Brasília, você não teria teria uma estrutura logística para lidar com o todo o processo que deveria ser feito para não ampliar as infecções.

Então, é uma catástrofe sanitária que está no horizonte, que está chegando aqui e o Brasil não fecha, por exemplo, o espaço aéreo para voos dos Estados Unidos. Como é possível um negócio desses, sendo que os Estados Unidos é hoje o país com o maior número de infectados no mundo? Então são medidas óbvias, de bom senso.

Não sou especialista, sou neurocientista, não sou epidemiologista, não sou médico sanitário.  Mas são coisas absolutamente de bom senso, que não são nem discutidas. Você não vê uma mensagem clara, transparente, objetiva, que vai numa única direção do Governo Federal. É criminoso, porque as pessoas não sabem o que fazer.  Eu acho que, nesse instante, a única esperança do Brasil é que os governadores dos estados passem a tomar providências necessárias. A hora que isso explodir de vez aqui, no Brasil, vai ser algo que nunca experimentamos na nossa história. 

E se a chantagem do governo for manifestada por essa greve de caminhoneiros, que seria algo irresponsável, que é um serviço essencial para manter a logística de alimentos, medicamentos e tudo que o Brasil precisa… você se sente quase chantageado pelo seu próprio governo, que está estimulando as pessoas a saírem de casa, ameaçando uma crise de desabastecimento de mercado. Eles querem o que também? Matar a gente de fome também?

Não é nem briga política mais; essa briga, chantagem, denota um comportamento mafioso, um comportamento que basicamente define bem as origens do atual presidente da República. Você espera isso de um crime organizado, não de um presidente  da República.

Reconta Aí – Dentro da sua área, que é a pesquisa, o que pode ser feito?

Miguel Nicolelis – O Brasil tem competências internacionais na área de saúde pública, de microbiologia. Nós temos a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Manguinhos que precisam receber aportes financeiros porque nos últimos anos, foram basicamente desidratados de recursos federais. Precisam ser financiados e receber tudo aquilo que precisam porque a competência científica está lá. Nós podemos confiar nesses pesquisadores e dar eles a chance de fazer algo pelo Brasil, imediatamente. Só que precisa ter uma ação coletiva. 

Outra  dia estava aqui e apareceu a noticia que a Capes ia reduzir as bolsas de novo, no meio de uma pandemia. Não é possível um disparate desses… de qual cabeça de administrador sai uma ideia dessas, no meio de uma crise mundial, de onde você precisa de todos pesquisadores da área disponíveis para ajudar no esforço nacional. É algo assustador porque são pessoas que não têm a menor condição de estar nos cargos que ocupam. 

Reconta Aí – Existe uma movimentação nesse momento para ampliar os recursos?

Miguel Nicolelis – Existe uma movimentação de se reorganizar em redes e procurar colaborar. Isto estou vendo em todas áreas, mas você não consegue obter recursos do Governo Federal se o Governo Federal não liberar os recursos, entendeu? Eu já publiquei inúmeras propostas nos últimos dias de como gerar recursos que podem ser transformados em capital de pesquisa nas universidades federais, nos institutos de pesquisas. 

Não é só…  Você vai ter que pôr dezenas de bilhões, talvez centenas de bilhões na linha de defesa primária para aumentar número de leitos, número de profissionais, conseguir material de proteção para os profissionais de saúde; aumentar leitos de UTIs, criar novas formas de construir leitos de UTIs que não necessitam de prédios, enfim.  Você também vai precisar de recursos para aumentar o grau de movimento de pesquisadores nessa área, que possam ajudar na identificação das mutações, na procura de terapias, de ofertas de uma vacina..

O Brasil tem total competência científica para isso, mas está estrangulado na fonte de recursos porque o Governo Federal acredita o Estado deve ser destruído, enquanto que todo mundo está se dando conta que a época da visão neoliberal, de destruir os estados, morreu com o primeiro paciente que passou a morrer do vírus. É óbvio, só combate uma epidemia dessa com o Estado forte. E essa a grande mensagem inicial dessa pandemia, esses delírios de economistas que nunca viveram na linha de frente de um País moderno e que precisa saúde, ciência, educação, tecnologias para atender as demandas dessas áreas. Esses caras têm que ser afastados completamente da vida pública, eles não têm a menor ideia. Eles vivem num mundo criado na cabeça deles e que está levando o mundo ao colapso.

Reconta Aí – O sr gostaria de fazer alguma observação final?

Miguel Nicolelis – Minha observação é o que os brasileiros têm que se unir dentro dessa visão, que estamos dentro de um processo de guerra. Isso aqui tem que ser claramente estampado na cabeça de todo brasileiro. Nós vamos enfrentar a maior guerra que o Brasil jamais enfrentou. Ela não é uma guerra contra uma nação, contra  um inimigo que a gente consegue ver. Mas é um inimigo tão letal quanto qualquer outro inimigo numa guerra.

É um inimigo capaz de matar centenas, senão milhões de brasileiros nos próximos seis, oito meses. O inverno está chegando e as coisas vão ser mais difíceis ainda se os brasileiros não se unirem homogeneamente para lutar contra essa pandemia e descartarem esses delírios, essas ideias absolutamente estapafúrdias que o Governo Federal está tentando disseminar.

Então, ou Brasil se une agora e enfrenta isso enquanto nação, sociedade unida, ou vamos entrar no precipício, cujo fundo do poço é desconhecido, a gente não sabe onde vai ser. Não sei como alarmar mais as pessoas: é difícil usar palavras para definir quão grave é a situação. É a pior tsunami, pior hecatombe que o Brasil já se defrontou provavelmente na sua história.

Ouça a entrevista completa:

https://soundcloud.com/user-944955161/ouca-ai-entrevista-com-miguel-nicolelis-ep01