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Não há sangue na camisa, mas há nas mãos da mídia

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Arquivo de Imagem
card artigo Mauricio Falavigna

Nos últimos dias presenciamos algo que preocupa mais os meios de comunicação do que uma possível lei de democratização da mídia. Investigar o atentado que gerou a ascensão do fascismo no País parece ser uma facada no bucho do poder. Diante do documentário de Joaquim de Carvalho, do 247, o incômodo de capitães da mídia – e também de seus servos, que reacenderam a chama da indignação corporativa – gerou silêncios obrigatórios ou reações violentas.

Que fossem expressas por um meio tradicionalmente afeito a ditaduras, como a Folha, não surpreende. Talvez para alguns seja incompreensível o lamento de um grupo jornalístico de origem norte-americana, que construiu uma aura de independência a partir da divulgação seletiva (e lucrativa) de um material que não investigou, mas caiu dos céus em suas mãos.

No caso do jornalão, as perguntas pífias que foram enviadas parecem ter sido investigadas (finalmente, um jornalista com essa função por ali) arduamente para encontrar mínimas falhas em uma narrativa que, diz o inquiridor, é conspiratória. O mesmo empenho não foi visto com as lacunas enormes da versão oficial construída pelo staff do candidato, pela Polícia Federal e pela mídia.

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Colocar em dúvida dois gestos de mãos ou uma tentativa de filiação a um partido de direita em nada se assemelha a uma viagem preparada com um esquema de segurança que diferiu de todas as outras viagens da campanha, para começar. A partir daí temos uma enxurrada de fatos inexplicáveis, contados pelo documentário com as limitações de quem não pode intimar testemunhas e figuras de interesse, ter acesso a todos os depoimentos ou ao prontuário do paciente.

A grande mídia jamais teve interesse em destrinchar os fatos que cercam o patético atentado, muito menos em questionar quem eram os personagens. Quantos de nós já tínhamos ouvido os parentes de Adélio, ou sabiam dos clientes ilibados de seu advogado ou do destino dos seguranças do candidato, que realizaram aquela jornada de trabalho memorável? No momento em que escrevo, beiramos um milhão de visualizações do vídeo, perfurando o muro construído pela mídia.

O outro reclamante, um empresa de comunicação de origem gringa, que ganhou fama e créditos (em todos os sentidos do termo) com a “Vaza Jato”, dando materialidade ao que toda a esquerda já sabia, carrega vários pesos discretamente evitados pelos colegas de profissão. Ter apoiado a Lava Jato de início, ter trabalhado por candidaturas republicanas nos EUA, ter participado dubiamente da construção do antipetismo golpista, ter selecionado e limitado um material de importância política vital e tentado capitalizar sua divulgação.

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Para isso utilizou-se até de mentiras (ou desejos abortados) que davam conta do tamanho do material hackeado e de seu formato – muitos esperam os tão anunciados vídeos até hoje. Para completar a fúria da agência norte-americana, o documentário é lançado no momento em que os direitos sobre todo esse conteúdo são vendidos a um cineasta declaradamente reacionário e lavajatista, que incentivou com seu trabalho não só o golpe, mas também a veia autoritária e miliciana que tomou o poder.

Há muitos méritos no documentário. O mais claro é demonstrar como o suposto atentado não recebeu uma investigação minimamente séria por parte da Polícia Federal. Porém, mais fundamental, é reiniciar um debate que enlaça tantos agentes do bolsonarismo – seguranças, policiais, médicos, milicianos, militares, advogados e, principalmente, uma mídia preparada para aceitar a versão dos fatos que decidiria a eleição – não foi feito algo simples por Joaquim de Carvalho, não foi realizado algo que possa encontrar espaço de divulgação nos grandes meios. E todos os cães de guarda foram acionados para calar ou ladrar, de imediato. Morder, se possível.

Sequer se pode falar em teoria da conspiração com tantos fatos esdrúxulos que não foram investigados, com tantas coincidências de encontros e com o enorme descaso com a segurança ocorridos em um único dia. Não se pode falar em excesso de imaginação quando os únicos beneficiários de um suposto crime foi a suposta vítima e seus apoiadores.

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Não se pode falar em conspiração quando toda uma campanha foi baseada em fake news. Não se pode discutir com imagens sem sangue. Não se pode aventar que o partidarismo influiu no documentário, afinal o principal meio de comunicação do País já havia tentado fraudar uma eleição com um falso atentado. A facada, é mais que provável, foi a bolinha de papel que deu certo.

Hoje temos um movimento oposicionista dos principais noticiários, todos criticando o presidente e seu comportamento pessoal. Mas todo o desmonte do Estado, a desregulação do trabalho, o teto de gastos e as privatizações são apresentados como benesses para a população. Dentro do golpe antitrabalhista e antipopular, Bolsonaro parece já ter cumprido seu papel, agora é preciso limitá-lo, miná-lo, distanciar-se da Besta. Mas manter os objetivos do impeachment e da Lava Jato: criminalizar o maior partido de esquerda do Brasil e tentar impedir a volta de um governo popular. A oposição ao bolsonarismo não pode ultrapassar alguns limites.

Notícias falsas não se solidificam no imaginário popular sem o apoio da grande imprensa. Versões “oficiais”, muito menos. Atingir a grande mídia é estocar o coração do Golpe, é sangrar quem sustenta o poder. A facada no País, ao que parece, não pode ser desfeita.