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Não basta votar em mulheres. É preciso eleger as que lutam pela classe trabalhadora

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Tínhamos ali a tempestade perfeita e o impeachment só acontece quando há a tempestade perfeita. Não vi machismo no evento.”

(Simone Tebet)

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Em 1932, quando o voto feminino foi aprovado, havia limitações. A mulher precisava ser casada e ter a autorização do marido para votar. A lei foi reformulada dois anos depois, mas gerou uma participação bem limitada em 1933, resultando em uma representação de 10% da Câmara. Em meados dos anos 1990, veio a primeira iniciativa para amenizar essa desigualdade: partidos e coligações tiveram de reservar 30% de suas vagas para mulheres. Mas só a partir de 2009 é que a norma foi cumprida de fato. Lembrando que em 2018 o STF e o TSE tiveram de garantir os recursos às candidatas, com a exigência de um mínimo de 30% dos fundos partidário e eleitoral e do tempo de propaganda reservados às candidaturas femininas. Com tudo isso, 90 anos depois, deputadas eleitas representam apenas 15% do total da Câmara e menos de 13% do Senado.

Não bastasse a discrepância, em 2019 um projeto de lei da deputada Renata Abreu (Podemos-SP), a relatora da reforma política, determinava que, se os partidos não preenchessem a cota de 30%, poderiam deixar vagas vazias. Propunha que se reservassem as vagas; mas não haveria problema em não preenchê-las. Por exemplo, se houvesse cem vagas para um partido, ele poderia lançar 70 candidatos e nenhuma mulher. Depois a proposta do texto da deputada passou a reduzir para 15% o número de vagas obrigatórias. O texto ainda não foi aprovado.

Há no mínimo dois motivos importantes para combater a sub-representação. O primeiro diz respeito à ocupação e circulação de mulheres nos espaços de poder serem culturalmente naturalizadas em um país onde o machismo e a misoginia geram exclusão e violência brutal, diária. O segundo diz respeito ao sistema democrático: a maioria da população se encontra alijada de lutar pelos seus interesses, suas pautas, suas visões de mundo. É como se o direito à cidadania não se estendesse à metade da sociedade.

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Um estudo da União Interparlamentar, organização internacional responsável pela análise dos parlamentos, mostra o Brasil na 142° colocação do ranking de participação de mulheres entre 192 países. Na América Latina, ficamos à frente apenas do Haiti. A Argentina é o país mais bem colocado no continente, logo em seguida vêm Cuba, Nicarágua e México. No Brasil, o baixo número de cadeiras ocupadas se reflete ainda por todos os aspectos da vida parlamentar, como a não ocupação de postos-chave no processo legislativo (presidência, Mesa Diretora, presidência ou relatoria de comissões).

Ainda cabe lembrar que a maior parte das deputadas eleitas são brancas e oriundas de setores privilegiados da sociedade (como a maioria do Congresso). As pessoas não se dão conta da raridade (ou milagre) que é a trajetória política de Benedita da Silva. Se as mulheres estão parcamente representadas, mulheres pobres e negras mal tem vez na vida política, especialmente nos escalões mais altos.

E, certamente, o rompante mais significativo contra a cultura política masculina foi a eleição da presidenta Dilma Rousseff. Na oposição ao seu segundo mandato e durante o processo de impeachment, a explosão de misoginia beirou o massacre, revelando toda a carga histórica de preconceitos e mostrando como estamos longe de qualquer equidade de cidadania. Até o uso da palavra no feminino corroeu a alma do poder estabelecido. Em meio a sarcasmos que lembravam o anedotário machista de décadas atrás, até uma ex-presidenta do STF fez questão de mostrar sua misoginia e desconhecimento da língua portuguesa ao corrigir erradamente o termo logo após o impeachment, para aumentar a deselegância do ato e deixar claro seu ódio.

Os meios de comunicação, que entraram na campanha pelo impedimento da presidenta chegaram a divulgar adesivos obscenos colocados nos carros. Após o golpe, o novo tom da participação feminina foi dado com estardalhaço por uma revista de grande circulação: “(...) Marcela é uma vice-primeira-dama do lar. Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele) (...) Em todos esses anos de atuação política do marido, ela apareceu em público pouquíssimas vezes”. (Revista Veja de 18 de abril de 2016, matéria da colunista Juliana Linhares).

Se houve um declarado retorno a um projeto de sociedade patriarcal, que retrocede a imagem e o cotidiano feminino à esfera privada e tutelada, ele vem se impondo há tempos, apesar de uma luta constante. Talvez seja o momento de concluir que não basta votar em mulheres, é preciso dar visibilidade e acesso a mulheres que representem tanto as lutas históricas feministas quanto as demandas sociais e econômicas da maioria absoluta das mulheres brasileiras. E que coadunem suas lutas com embates políticos que questionem todo o sistema, da desigualdade que nos empobrece, nos arranca a dignidade e nos mata até a misoginia que domina secularmente a nossa cultura – e também apequena, violenta e mata mulheres todos os dias.