“...e deve-se considerar que não há coisa mais difícil de tratar, nem de êxito mais duvidoso, nem mais perigosa de lidar, que encabeçar a introdução de novas ordens”
(Maquiavel, O Príncipe)
“É formada na fantasia algo de violentamente lacerado; não se enxerga a nova ordem possível (...) Apenas a laceração violenta é vista, e o ânimo medroso faz recuar com o temor de perder tudo, de ter diante de si o caos, a desordem inelutável”.
(Gramsci, A Cidade Futura)
A propagação do medo mantém o viés de alta. Desde o início do seu governo, o atual mandatário vem acenando alegremente com a possibilidade de um golpe à antiga, com tanques na rua, sons de fuzis, prisões arbitrárias, fechamento de instituições e paus de arara que tanto causam nostalgia a sua família, aos milicianos, alguns donos de jornais e empresários da velha guarda. Promessas que cumpriam três funções: criar temores para a retomada da vida institucional e dos processos democráticos, amedrontar o clamor pela volta do PT e fazer a opinião pública esquecer que o golpe já havia sido dado, o governo já era militar, já vivemos um período de exceção.
Todos já viram que o golpe clássico não vem. Pode até nascer sem lastro, mas não verá a luz. Mas temer os tanques obsoletos e sem combustível pode ser útil para camuflar caminhos reais de resistência, reconstrução e mudança.
Muito se fala sobre a organização da ultradireita internacional, os olhos voltados sobre as eleições brasileiras. Assim, as visitas e relações do presidente com Viktor Orban, líder húngaro, e com Tucker Carlson, apresentador da Fox News, receberam alertas difusos da mídia: populismo, Bannon, Capitólio, extrema-direita, trumpismo são palavras que se misturam para mostrar riscos a que estamos expostos. Essa miscelânea de valores agregada aos crimes mais recentes ligados ao presidente e seus partidários, a morte do militante petista em Curitiba e o famigerado briefing aos consulados estrangeiros, vêm nos confirmar a certeza de que algo tresloucado será tentado. E certamente será, já que ninguém em sã consciência imagina o patético capitão participar de uma eleição perdida.
O momento é de mudança, aqui e lá fora. Desenha-se um mundo multipolar, a hegemonia única luta para manter antigos domínios e preponderâncias. A retomada do continente vem apontando rumos que relembram o momento de recrudescimento do Mercosul, de formação dos BRICS. E os resultados dos processos democráticos permitem sermos otimistas nessa direção. O novo governo colombiano aproxima-se de Maduro, aos poucos. Evo Morales está colocando a proposta de nacionalização do lítio e outros minerais para os novos governos latino-americanos. Tanto o governo atual como o kirshnerismo mais puro têm resistido às novas ameaças de lawfare e sopros primaveris na Argentina. Panamá e Equador estão em estado de greves e revoltas contínuas.
A presidente de Honduras insiste em neutralizar o Supremo golpista com eleições para juízes. Lopez Obrador fortalece-se com o passar do tempo e se alinha a uma nova ordem. No Brasil, reformas básicas e afastamento de militares já foram prometidas, agora até cresce burburinho sobre uma nova Constituinte. Ninguém sabe como se dará a reconstrução do Estado, a retomada institucional e o restabelecimento do processo democrático por aqui. Hoje até mesmo “estado de emergência” é um termo aceito por Congresso, Judiciário e mídia… Como se dará nossa retomada?
Ante a uma nova ordem, incita-se o medo. São atentados tímidos, mas cruéis. Agrotóxicos e fezes no lugar de explosivos; guardinhas da esquina no lugar de divisas mais sérias; inverdades risíveis (risco de fraude nas urnas eletrônicas) e não uma mentira bem arquitetada como a Lava Jato; milicianos e fascistas babões que arrotam uma beligerância o que os donos do capital e do poder, engravatados e maquiados, fingem que sequer irão aplaudir. Muda-se o foco da resistência para o inimigo mais fraco e visível.
É fácil apontar, acusar e desmontar as mentiras no ZAP, as pérolas forjadas no gabinete do ódio. É um combate que se pode colocar na ordem do dia. Difícil é mostrar que o genocídio em Kosovo foi forjado, que não havia armas químicas no Iraque, o golpe entre flores e suásticas na Praça Maidan, a infiltração nas hostes do judiciário do Brasil (Equador, Paraguai, Argentina...), o apoio ao banditismo de Jeanine Añez ou Guaidó, o patrocínio ao terceiro setor e às mídias em todos esses países, a presença da USAID e do NED em cada instabilidade regional fabricada… Urge ressaltar a presença de Valerie Huber no Itamaraty, preocupada com o aborto e temas conservadores.
Mas é melhor não analisar o encontro de Victoria Nuland com ONGs brasileiras. É preciso ridicularizar o Capitólio, estrelas da FOX ou a presença brasileira da sucessora de Damares na Conferência sobre Liberdade de Religião. Difícil foi explicar o golpe de 2016, ou a presença de Liliane Ayalde como embaixadora dos EUA entre 2013 e 2016 por aqui, após Honduras e Paraguai. “Essa é a essência do bem usado algoritmo político ocidental – inventar uma história falsa e aumentar o hype como se fosse uma catástrofe universal por alguns dias, enquanto bloqueia o acesso das pessoas a informações ou avaliações alternativas, e quando algum fato é revelado completamente, eles são simplesmente ignorados – na melhor das hipóteses mencionados nas últimas páginas das notícias em letras pequenas”. A frase é de um dirigente censurado pela mídia livre ocidental.
Detalhando: é fácil (e quase obrigatório) mostrar os crimes presentes no “kit gay” e nas elucubrações de um Carluxo ou Allan da vida. No entanto, ninguém espera (é proibido) que se faça o mesmo com a Lava Jato e com Moro. Voltemos aos medos mais fáceis e bem aceitos pelos taumaturgos da opinião pública.
Essa ode ao medo, ao pavor social, irá recrudescer nos próximos meses. Os encontros do presidente e seus comparsas podem garantir fazendas de robôs, boatos e mentiras em série, atentados forjados, ataques cibernéticos e outras formas de semear o terror e a insegurança social. Bolsonaristas (ou que tais) irão mostrar que o comunismo e a imoralidade estão prestes a destruir o mundo. Que há uma luta santa, e tudo o mais que já vimos e ouvimos. Fatos encenados podem ganhar o palco. Reputações serão atacadas. As redes sociais progressistas enfrentarão tempestades nos meses a seguir.
Talvez a campanha de Lula esteja bem preparada para isso, em termos de inteligência e tecnologia. Talvez. Mas a luta por uma desestabilização de um governo petista após a campanha irá prosseguir. E é bom se preparar para resistir a quem comanda os fios das marionetes.
O medo que nos mandam sentir é de um golpe. Faz tempo, ele está aí e seguimos em frente. O medo que eles sentem, por sua vez, é de perder o controle. O medo que eles sentem é da retomada de rumos mais autônomos do Brasil e da nossa região. O medo deles é que a volta de Lula é cada dia mais certa.