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A Estranha Copa do Mundo – a alegria em um mundo esfacelado

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É o evento que mais movimenta emoções no mundo. Por muitas vezes foge da esfera da razão, contrariando estudiosos. Em um sem número de ocasiões suscita incivilidades, provoca violências e ressuscita ódios antigos. Também gera laços de solidariedade e empatias inusitadas, estanca conflitos e mostra uma humanidade inaudita, que não é vista em tempos corriqueiros. Mas, desta vez, a desrazão foi superada com larga vantagem nos discursos que dissecam a Copa do Mundo com argumentos sociológicos, políticos e filosóficos.

A moldura que cerca a Copa do Mundo já mereceria uma crítica implacável. Para ficar em alguns: os escândalos que envolvem a eleição do país-sede são mais que conhecidas. Para o sucesso econômico do evento, que movimenta bilhões, sequer são rememorados. A exclusão da Rússia e a postura pretensamente antipolítica da FIFA (como do COI) são absurdos não questionados. A FIFA jamais deu sanções similares aos EUA, aos países da OTAN ou Israel. Mas isso não é questionado pela mídia. O show deve continuar, tanto para os dirigentes quanto para a mídia hegemônica, mas a Copa deve receber suas críticas, portanto é necessária uma nova objetividade. Parecer progressista, mas cobrir e prestigiar o espetáculo da Copa – o que boa parte da população mundial realmente anseia. Assim, tudo o que poderia parecer negativo em uma Copa no Catar se concentrou na questões dos direitos humanos e, sobretudo, na homofobia.

Na Copa de 1966, na Inglaterra, a homossexualidade ainda era ilegal, Sem falar em violações de direitos humanos em suas propriedades coloniais – Catar, inclusive. A Alemanha, em 1974, tinha acabado seu “expurgo de radicais” do serviço público e nas universidades. Era o tempo da Berufsverbot. Em 1994, Copa nos EUA: o país-sede ainda realizava bombardeios e sanções no Iraque e na Somália, além de instaurar embargos no Haiti, liderar a OTAN em ações de combate na Sérvia e na Bósnia. E foi o ano da violência policial sobre Rodney King, que se repete até os dias atuais. Metade dos seus Estados possuíam leis anti-sodomia e antigays. Como o Estado da Georgia, que sediou as Olimpíadas dois anos depois, mantendo um conjunto de leis que pareciam mais fundamentalistas que as do Catar, incluindo o racismo legal e orgulhoso. Pequenos exemplos de atitudes da Anistia Internacional e de movimentos sociais envolvidos em denúncias que não aceitam as violações do Catar, partindo para críticas ao regime e à cultura local que, muitas vezes, passam de condenação moral a uma aberta islamofobia.

A repercussão das queixas ao evento por terras brasileiras foi quase cínica. Um país cuja democracia foi golpeada e, mais ainda, com números de feminicídio, mortes de homossexuais e transexuais que ganharia sua própria Copa de violações de direitos, com crimes de racismo cometidos pelas suas próprias forças da lei e discursos racistas e homofóbicos reforçados por seus governantes. Mas não seria adequado dedicar tempo e prazer que tivessem relações com uma Copa sediada no Oriente Médio. Some-se a essa análise os queixumes dos coveiros do Carnaval, sempre presentes. “O futebol está profundamente mercantilizado” (o que é verdade) e “desconectado das paixões populares” (o que deve ser uma anedota que provocaria risos globais).

Como elemento complicador, uma disputa de símbolos nacionais. Ninguém nega que a seleção e seu fardamento verde-amarelo sejam nossos ícones mais importantes, mas todos sabem que fantasiaram a extrema-direita e causaram anos de ojeriza à esquerda. Desta vez, os eleitores de Lula e torcedores mais intelectualizados não se concentraram no argumento de alienação do futebol. Preferiram apontar o bolsonarismo de Neymar e alegar não torcer por uma “seleção dessas”... Uma atitude que só não ganhou a Copa da antipopularidade porque os manifestantes de direita se anteciparam, anunciando que “não podemos prestigiar a Copa, temos de continuar nas portas dos quarteis”. A recusa política da Copa ganhou ares de uma esquizofrenia inédita por aqui até então. O ápice desse embaralhamento mental complexo se deu quando fotos de um filho do presidente foram feitas em meio à torcida brasileira no Catar. Ao mesmo tempo, Gilberto Gil estava lá e ganhou destaque. Vejam só, “estamos representados também”… Todos os discursos e posicionamentos políticos que ganham corpo, desmancham-se na brisa seguinte.

A paixão pelo futebol resiste à Copa fake catari, onde festas, estádios e torcidas antes lá nunca estiveram e deixarão de existir depois, como oásis que refrescam o deserto e nossos ânimos combalidos, que vêm pedindo água há tempos.

E a política não sai de cena. Enforcados por homossexualismo e um pernambucano preso por andar com a bandeira de seu Estado são destaques, os trabalhadores imigrantes mortos nas obras não despertam a mesma comoção… Uma bandeira com arco-íris invadiu o gramado nas mãos do torcedor e ganhou destaque mundial. Elimaq, jogador do Marrocos, após a classificação histórica, desfilou pelo estádio com uma bandeira da Palestina e foi ovacionado por africanos do Norte e pelos próprios cataris, mas isso não estará nos noticiários. Os gritos decoloniais não hesitam em torcer pelos países vizinhos e explorados (menos o “Brasil de Neymar”), mas aceitam a entrega da Petrobras e dos nossos recursos hídricos com benevolência aos algozes descendentes.

Violações e injustiças, resistência e luta por mudanças, sempre estarão em curso. Paixões e festas, também. Símbolos e orgulhos coletivos não se dissecam nem se encerram em textos de ocasião. Neste caso, um texto despretensioso, vindo de alguém que despreza o menino Ney e torce como uma criança para que ele volte aos campos e decida os jogos. Mantém uma relação de amor e ódio a uma camisa que, sim, gostaria que fosse avermelhada. Encara o Velho Mundo com hostilidade, mas se compraz se ele vencer um rival histórico da bola. Tem horror a qualquer fundamentalismo religioso, mas torceu para Arábia e Tunísia como se fosse a uma mesquita. E não sabe mais o que sentir quando escuta o hino nacional...

O baile insano seguirá, a Copa do Mundo também, o Brasil está bem e avançando. A maior parte da sociedade vai esperançando seu desafogo. Quem sabe ele virá colado à posse. Quem sabe Lula não comemorará o hexa como o penta, logo antes de subir a rampa. Quem sabe a alegria do pobre não acabará na quarta-feira. A felicidade não é pecado, não é crime político. E, por tudo o que passamos, a esta altura do campeonato, merecemos todo extravasamento neste fim de mundo.