Ainda não há a dimensão exata dos protestos golpistas e, muitas vezes, abertamente fascistas que pedem a impugnação da eleição e uma intervenção militar. A mídia, até com a intenção nítida de marginalizar essa movimentação pela não cobertura ou pela ridicularização, não destaca a maior parte dos atos. Mas ainda há obstrução de estradas, muitas vezes recorrendo a atos terroristas, violência explícita (no Paraná não pouparam nem um padre da degola), empresários entusiastas e financiadores, muita colaboração de forças de segurança e, por fim, tentativas de representantes políticos, muitos deles generais, de prolongar a interrupção democrática, estender um governo que contou com um golpe jurídico-midiático e apoio militar ostensivo para ascender ao governo e implantar um regime de destruição, fome e lucros exorbitantes para esses mesmos grupos sociais.
Os gestos políticos do Judiciário – cada vez mais protagonista – são, a essa altura, firmes mas cuidadosos, já que não podem abarcar a totalidade dos golpistas. Mas necessitam recobrar alguma credibilidade nas instituições da República, até mesmo pela própria sobrevivência. A ideia parece ser a formação de uma opinião pública predominante para balizar ações investigativas e punitivas. E o novo governo petista, próximo a tomar posse, vem mantendo silenciosamente o planejamento de combate a essa extrema direita.
Inteligência e Defesa parecem ser os últimos grupos da Transição a serem formados. Junto com parcela do STF, do Judiciário e ao lado de uma Polícia Federal reformada, talvez expurgada, serão os instrumentos para pensar esse combate e expulsar as excrescências do serviço público. Serviço público que varia entre o atendimento à família do presidente, o bloqueio de investigações sobre a administração, a luta espúria por um ideário moral, a anulação de mecanismos de fiscalização, a instrumentação política e o desmantelamento do aparato estatal. Ao lado desses ilícitos, o aferimento de lucros indevidos – o que poderia ser óbvio e secundário em uma gestão que visou a privatização da própria máquina pública.
A escolha de nomes parece envolver um general da reserva, Marcos Gonçalves Dias, e o delegado Andrei Rodrigues, que cuidou da segurança pessoal de Lula na campanha. Mesmo que não sejam os nomes, o filtro político e ideológico já vem recolhendo nomes há um tempo. O Gabinete de Segurança Institucional, criado por FHC, deve voltar a intermediar as relações entre a Presidência e a ABIN, que neste governo lembrou muito mais o famigerado SNI dos tempos em que generais não fingiam não ser governantes. Há a necessidade clara de uma “retomada” (entre aspas, talvez nunca houve) de algum controle sobre uma instituição tão retrógrada e gananciosa.
O militarismo, entreguista e anacronicamente anticomunista, e o lavajatismo, autoritário e fornecedor de ideários moralista-jurídicos, são as bases a serem minadas para o combate dos movimentos antidemocráticos. E é muita coisa.
É demais pedir o esforço de memória que comprovou que essa sujeira não pode ser varrida para debaixo do tapete. Boa parte dos problemas que enfrentamos nos últimos anos provém, em linha reta, da leniência com os criminosos da Ditadura. A tradição brasileira de acomodamento e amenização dos movimentos reacionários que interromperam trajetórias legítimas e populares chegou a transformar o golpe e a Ditadura em um “movimento”, nas palavras de um juiz do Supremo, ou uma Ditabranda, nas palavras de um dos principais veículos de comunicação. Essa mesma tradição gerou a eleição de um troglodita de pouca capacidade política, mas com grande articulação simbólica e efetiva com um movimento global de ultradireita.
Desta vez, a própria sobrevivência de instituições – muitas delas partícipes do golpe de 2016 – irá depender de uma punição publicizada, midiatizada e espetacularizada de, no mínimo (mais uma vez contando com a tradição nacional), bodes expiatórios que simbolizem o sentimento obscurantista. Afinal, é mais viável condenar um capitão e sua máfia nascida em casernas ou subúrbios do Rio do que trancafiar generais estrelados. É mais fácil punir um empresário que se veste de periquito do que um Steinbruch que turbinou o delinquente no segundo turno e participou ativamente da gestão de Guedes. É mais conveniente julgar meia dúzia de comunicadores desmiolados do que o complexo midiático que deu sustentação à Lava Jato e à quebra do processo eleitoral. E é mais simples desmoralizar e, quem sabe, até não diplomar um ou outro ator de destaque da Lava Jato do que refundar o Ministério Público.
Pequeninas vinganças que podem dar a impressão de Justiça e de retomada da coisa pública e da legalidade. Que também podem criar uma sustentação política no primeiro momento de governo e forjar novas certezas sobre o que é “certo”, “bom” ou “errado”. Mas é impossível vislumbrar um processo sério que nomeie e culpabilize os crimes contra a sociedade e o Estado cometidos neste período. Inclusive, vários de seus protagonistas participam da atual “retomada da normalidade”. Mas vale lembrar que já vimos os custos de não se ir té o fim. Já deveríamos saber que não se empurra as raízes do mal para um canto esquecido do quintal. Elas ficarão ali. Elas voltarão a crescer.