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"Desmonte da Ciência vai prejudicar muito mais as mulheres do que os homens", diz pesquisadora do CNPq

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Imagem do site Recontaai.com.br

No mundo todo, as mulheres ainda representam apenas 28% dos graduados em engenharia e 40% dos graduados em ciência da computação e informática. As diferenças são ainda maiores em áreas mais qualificadas, como inteligência artificial, onde apenas 22% dos profissionais são mulheres. E com a crise sanitária, as desigualdades de gênero aumentaram no último ano.

Os dados fazem parte do Relatório de Ciências da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) publicado nesta quinta-feira (11), data em que se comemora o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência.

Para falar sobre a situação das pesquisadoras no Brasil, o Reconta Aí conversou com Márcia Barbosa, diretora da Academia Brasileira de Ciências e professora de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Leia a seguir a entrevista:

Reconta Aí – Entidades científicas, acadêmicas e tecnológicas estão mobilizadas para tentar reverter dois vetos do presidente Jair Bolsonaro que tiraram até R$ 9 bilhões do fomento à Ciência e à Tecnologia em 12 de janeiro. Esse desmonte na Ciência acaba prejudicando muito mais as mulheres do que os homens?

Márcia Barbosa – Certamente o desmonte da Ciência vai prejudicar muito mais as mulheres do que os homens. E a razão é que toda vez que tem uma restrição de financiamento e a gente precisa julgar e restringir o número das pessoas que vão ganhar financiamento, no patriarcado essa visão de que os homens são mais inteligentes, mais espertos, mais empoderados, têm mais chances e ganha.

Nesse momento, temos um segundo problema que é a pandemia. A pandemia jogou toda atividade doméstica, da casa e dos filhos, que já era das mulheres. Então, todo esse peso – e agora tendo que cuidar dos estudos dos filhos – vai fazer com que as mulheres na volta da pandemia tenham avaliações piores, como já mostram vários estudos. Há um estudo brasileiro, de um grupo chamado Parent In Science , que se debruça sobre essa diminuição da produtividade das mulheres em decorrência do cuidado maior que elas têm que ter com a família e filhos.

Então, esperamos sim que vamos ter restrições, e restrições de financiamento, o que impacta mais fortemente nas mulheres do que nos homens.

Reconta Aí – Quais são os desafios para as mulheres ingressarem no meio científico?

Márcia Barbosa – O primeiro grande desafio vem lá da infância, onde meninos e meninas são educados de maneira diferente. Tem estudo realizado nos Estados Unidos que é contar uma história de uma pessoa inteligente para meninos e meninas de cinco a sete anos. Aí, pergunta se a pessoa é um homem ou uma mulher. Aos cinco anos, dividem meio a meio.

Mas aos sete anos, meninos e meninas já identificam pessoa inteligente como um homem. Mais grave do que isso, esse mesmo estudo mostra que ao serem desafiados para irem a um jogo ‘para pessoa inteligente ou para pessoa esforçada’, as meninas vão para o joguinho das esforçadas. Então, as meninas vão aprendendo que elas são esforçadas.

Jennifer x John

Tem um outro estudo que mostra que mais tarde, quando estão selecionando pessoas para serem assistentes de laboratório, são encaminhados currículos para pesquisadores e metade dos currículos, é colocado o nome de John e na outra metade, Jennifer. Mas é o mesmo currículo. E a avaliação dos pesquisadores sobre o John e a Jennifer é de que eles são completamente diferentes, inclusive o John recebe uma oferta de emprego e de salário muito maior.

Nós temos embutido nessa sociedade a visão que atividades que requerem esforço são pras mulheres. Então, elas estão desenhadas para ser, se entrarem para a Ciência, não as protagonistas, não as chefes de laboratório, não a diretora de um instituto nacional, mas as que vão estar na linha de fundo.

Reconta Aí – Mulheres na ciência no Brasil ainda são invisíveis?

Márcia Barbosa – O Brasil ainda enfrenta um grande desafio. Hoje, no mundo, as mulheres são cerca de trinta por cento da comunidade científica; no Brasil isso não é diferente. Se for olhar as bolsistas de produtividade e pesquisa, as mulheres são hoje trinta e seis por cento, mas não pensem que isso vêm melhorando. As mulheres no Brasil eram trinta e dois por cento há quinze anos. Então, a melhoria é muito lenta. E olha que o Brasil, em termos de mulheres na Ciência, é um dos campeões mundiais porque em outros países, a situação de mulheres estarem fazendo pesquisa é muito mais baixa.

Outro aspecto interessante dessa invisibilidade, desse decaimento, é olhar no topo da carreira. Nas diversas áreas do conhecimento, o percentual de mulheres na Academia [Academia Brasileira de Ciências] é dezesseis por cento. Dezesseis por cento que não estão igualmente distribuídos. Nas áreas de Ciências Biológicas e da Vida, o percentual chega a vinte e cinco por cento. Mas na minha área de Física ou na área de Engenharia, esse percentual cai drasticamente em torno de quatro por cento.

Então, nós somos invisíveis e porque nós não estamos lá também. E quando estamos lá, muitas vezes sofremos uma série de preconceitos que vem do patriarcado.

Gráfico da Academia Brasileira de Ciências

Reconta Aí – O que pode ser feito para reverter essa situação?

Márcia Barbosa – Eu vou ser mais ampla e falar de diversidade. Nós precisamos ter mais mulheres nas áreas onde não têm mulheres, mais homens nas áreas onde não têm homens, mais negras e negros em todo lugar porque eles raramente estão em alguma parte da Ciência. E uma das coisas: medidas públicas.

E nesse sentido, a gente tinha uma Secretaria da Mulher que foi uma parceira importante para fazer medidas de políticas públicas. Uma delas foi a criação da licença para bolsistas de mestrado, doutorado, pós e de bolsista de produtividade e pesquisa. A Secretaria da Mulher também lançou editais fundamentais promovendo a igualdade de gênero que estimulava redações sobre mulheres na Ciência e competições e prêmios para isso.

E criou toda uma infraestrutura de editais que levavam a financiar grupos que trabalhavam com meninas nas escolas e também verbetes que constam nas páginas do CNPQ com as histórias de mulheres precursoras. Tudo isso foi descontinuado com a extinção da Secretaria da Mulher.

Gostaria de terminar chamando atenção de algo muito grave que está acontecendo nesse momento em que não temos uma Secretaria da Mulher, e não temos no Governo Federal: ninguém está preocupado com direitos humanos.