"Quando me levantei da cadeira, vi que ela estava toda suja de sangue. Minha calça era escura, ainda assim foi muito difícil disfarçar a situação. Meus colegas de classe não me apontaram, mas começou um burburinho na sala de aula e ouvi que um deles ria e me chamava de porca, mesmo que falando baixinho", relembra uma mulher, hoje adulta, sobre um dos seus ciclos menstruais na adolescência.
De acordo com artigo publicado pelo médico Drauzio Varella, uma mulher menstrua entre 400 e 500 vezes ao longo da vida. Entretanto, esse fênomeno natural é acompanhado de uma série de questões que vão desde a saúde, até a falta de dinheiro para lidar da maneira que a sociedade julga adequada com o sangue menstrual: o uso de absorventes.
A chamada pobreza menstrual afeta grande parte da população brasileira e atinge além de mulheres, homens transexuais. Conforme pesquisa da Johnson & Johnson Consumer Health em parceria com os Institutos Kyra e Mosaiclab, divulgada em setembro deste ano, 28% das mulheres de baixa renda são afetadas diretamente pela pobreza menstrual, o que representa por volta de 11,3 milhões de pessoas.
Porém, para o presidente da República, Jair Bolsonaro, essa questão não é uma prioridade. Ao sancionar a Lei nº 14.214, Bolsonaro vetou a distribuição de absorventes à meninas e mulheres de baixa renda, como havia proposto a deputada federal Marília Arraes (PT/PE) no Projeto de Lei 4968/19, que deu origem à Lei. Além do presidente, assinam mais quatro homens do governo: o ministro da Economia, Paulo Guedes; da Educação, Milton Ribeiro; o ministro da Saúde Marcelo Queiroga e o Secretário-executivo do Ministério da Cidadania, Luiz Antonio Galvão da Silva Gordo Filho.
Pobreza menstrual é violação dos direitos humanos e perpetua desigualdades
Conforme aponta o relatório “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos” da Organização das Nações Unidas (ONU), a pobreza menstrual é afetada por variáveis que envolvem a desigualdade racial, social e de renda. O documento aponta que famílias pobres tendem a gastar menos com ítens de higiene pessoal, já que a prioridade é a alimentação.
No mesmo sentido, o relatório confirma que a pobreza menstrual pode ser fator de estigma e discriminação, levando muitas vezes as meninas a abandonarem a escola. Com a evasão escolar perpetua-se o ciclo de pobreza e exclusão social.
“Muitas meninas ainda sofrem com estigmas relacionados à menstruação, o que tem grande impacto em sua autoestima para toda a vida. Além disso, traz consequências para a socialização com sua família e seus pares, muitas vezes refletindo, inclusive, na vida escolar, especialmente entre adolescentes, levando até ao abandono dos estudos. Por isso, é essencial que tenham acesso a informações corretas sobre o tema, além de condições dignas de higiene, e que a discussão seja feita abertamente na sociedade para impulsionar melhorias”, afirma Florence Bauer, representante do UNICEF/ONU no Brasil.
Pobreza menstrual é questão de saúde pública não apenas "coisa de mulherzinha"
Entre os professores e as professoras procurados para a elaboração dessa matéria, apenas as profissionais da educação tinham relatos para contar. Entre os professores, as respostas convergiram para frases como: "As professoras acabam lidando com isso" ou "Nunca chegou ao meu conhecimento", ainda que todos eles tenham se mostrado sensibilizados com o tema.
Já entre as mulheres educadoras, as respostas foram mais assertivas. A professora Julia Schorr, por exemplo, relatou que durante o período em que foi coordenadora pedagógica de uma escola pública em Brasília, em 2018, implementou voluntariamente um programa para atender às mulheres de baixa renda. "Quando eu era coordenadora de uma escola de ensino médio, fazia campanha entre os professores para comprar absorventes e as meninas que precisassem me pediam. Com o tempo, a gente foi deixando os absorventes no banheiro. Funcionou bem enquanto eu coordenava", relata Schorr.
Porém, o problema não está restrito às adolescentes, mas também às mulheres que trabalham. Renata Valença, psicóloga, relembrou uma situação que viveu já adulta. "No trabalho, uma vez, que uma das mulheres do time da limpeza (que era terceirizado) falou no banheiro que estava usando papel higiênico como absorvente porque não estava conseguindo comprar pois tinha que manter a família sozinha", contou Valença. Segundo ela, daquele dia em diante, começou a deixar absorvente nos banheiros da empresa, disponíveis para quem quisesse pegar. "Aquela situação mexeu muito comigo", afirmou a psicóloga.
Mulheres que usam branco
Entendendo que a pobreza menstrual tem raça e recorte social, aso grupo Mulheres de Axé do Brasil (MAB) decidiu promover uma campanha para arrecadar absorventes e coletores menstruais para mulheres encarceradas e em situação de desamparo social. Conforme a comunicação da campanha, "o direito à higiene é um direito básico e fundamental, que infelizmente ainda é negado a muitas pessoas em nosso país".
A Ìyá OBADEYI Carolina Saraiva, que é psicóloga, afirmou que a campanha visa combater a violência menstrual em todos os estados do Brasil: "As mulheres de Axé do Brasil estão bastante mobilizadas pela causa por causa da campanha". Carolina Saraiva relata que atualmente está em contato com a Defensoria Pública do Distrito Federal para fazer com que absorventes e coletores menstruais cheguem às mulheres em privação de liberdade, homens trans em alta vulnerabilidade e para meninas nas escolas públicas.
O Congresso Nacional ainda pode reverter os vetos à Lei proposta pela deputada Marília Arraes e mais 34 deputados e deputadas nos próximos 30 dias.