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Assim é, se lhe parece

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card artigo Mauricio Falavigna

Quando um personagem nasce, adquire imediatamente tal independência inclusive do seu próprio autor, que pode ser imaginado por todos em tantas outras situações em que o autor não pensou em inseri-lo, e às vezes pode adquirir um significado que o autor jamais sonhou em dar-lhe! (Pirandello)

Como em uma peça teatral em que os personagens se rebelassem e não aceitassem o roteiro imposto, o Brasil atual saiu dos trilhos da direção. Ao menos nas aparências. Muitos dos criadores demonstram-se insatisfeitos com a criatura dirigente. Estrelados militares chiam, negam e renegam. Supremos juízes que tanto facilitaram seu caminho agora levantam barreiras.

Partidos não o aceitam, antigos aliados se mostram inconformados. Até jornalistas e nomes da mídia, que tanto sofreram em suas difíceis escolhas, hoje se mostram decepcionados. As aparências desaguam rios de lágrimas à direita de Deus.

A sensibilidade pública, meticulosamente construída, percebe um arrependimento generalizado entre os donos do poder. Todos suplicam pela democracia ameaçada – justo ela que, tão antiga e sólida, jamais esteve às portas do desmanche – e pela integridade das instituições, que teriam seus papéis definidos pela Constituição. Esta, então, é lembrada a todo momento, como se viva e pulsante.

Embora a monstruosidade que ocupa o planalto jamais tenha apresentado outra personalidade, jamais tenha disfarçado suas ideias e intenções, há um nojo que parece genuíno. Todos os autores do personagem querem substituí-lo, mas ele se recusa a sair do palco. Ao menos, é o que parece.

Continuam a viver em nós todos aqueles que se foram embora”, dizia o dramaturgo. Não há sequer uma análise na mídia que não nos diga que a Lava Jato acabou, que Bolsonaro está enfraquecido, que há militares que não concordam com o rompimento da democracia. É o que parece. E, no entanto, as prisões arbitrárias prosseguem, habeas corpus não são respeitados, o presidente não altera um milímetro de seus atos e falas, a democracia foi golpeada em 2016, as instituições estão desmoralizadas e as altas patentes chafurdam em cargos, desmandos, privilégios e negociatas.

Há muito arrependimento e revolta contra o presidente, nos garantem. Manifestações de rua diminuíram de tamanho a cada data e, na última, o pedido de impeachment foi contra um bandeirante de concreto. Fantasmas das bandeiras, do golpe de 64 e da Lava Jato mantêm-se em circulação no poder e nada os ameaça .

A luta contra a tragédia que se afunda apoia-se na crença da farsa. Afinal, nenhum movimento se repetiria com a intensidade real da trama de seu nascimento. O absurdo vertiginoso das mudanças aqui operadas em cinco ou seis anos reforça a crença na superficialidade farsesca. Não levamos a sério e imprimimos a marca do ridículo às imitações rocambolescas de fürer, visitas nazistas, sinais supremacistas, polícia política, genocídio planejado e exibições de força policial ou militar.

E as farsas aparentes se assentaram e ganharam corpo. Desprezamos julgamentos históricos e uma volta a 64 – ganhamos mais militares no governo do que nunca. Acreditamos que ainda restava um ou outro juiz em Berlim, mas nos esquecemos que eles contribuíram com a ascensão fascista ao poder e não perderam um privilégio sequer. Voltando a Pirandello, ele se negava a escrever farsas: dizia só se dedicar às tragédias por que a vida é feita delas, as farsas jamais existiram.

Se sobraram farsas, estão nos moinhos de vento contra os quais se erguem bandeiras. Uma CPI é instalada com o intuito de minar o presidente e estancar a sangria: os mesmos integrantes vistos como inimigos do governo votam as vendas da Eletrobras e dos Correios na surdina. Grita-se contra as falas de Sérgio Camargo e de Mario Frias enquanto a memória cinematográfica do País é incendiada.

Discute-se a derrubada de monumentos que exaltam colonizadores enquanto as universidades federais e a pesquisa científica são asfixiadas. O barulho infernal produzido pela balela do voto impresso conduziu toda a oposição e a opinião pública, mas a reforma eleitoral é aprovada pela Comissão da Câmara na calada da noite. Clama-se por impeachment enquanto a agenda econômica do governo e das elites é plenamente efetivada. Escava-se possibilidades de terceira via e se elaboram planos eleitorais enquanto o único objetivo do poder é evitar a eleição de Lula. A desorientação é o grande pilar que orienta a formação da opinião pública.

E vão se erguer novos moinhos. Ainda é preciso passarem a reforma administrativa e, principalmente, a MP 1045, o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEM), que irá aprofundar a maximização dos lucros empresariais sobre a classe trabalhadora. A enorme recessão brasileira será combatida com mais proteção ao capital e, mais do que isso, o aviltamento de todas as relações de trabalho. Bandeiras se erguerão em outras direções enquanto a espoliação irá ganhar formato legal e democrático.

Se há uma farsa, é a de que os que carregaram a ascensão do fascismo nas costas estão insatisfeitos. Não há magistrado ou oficial de alta patente que tenha perdido um privilégio. Não há grande fortuna que não tenha sido cevada. Não há um interesse patronal que não tenha sido atendido.

Não há mais uma área pública que não seja passível de cair nas mãos da iniciativa privada. Não há cobiça do mercado financeiro que não seja realizável. O sonho de uma sociedade sem Estado – reduzido a um balcão de negócios e uma administração de interesses do capital – se tornou palpável.

O desemprego, a fome e a pobreza inspiram a disciplina da classe trabalhadora e dos excluídos. O desespero faz com que se aceite qualquer indignidade por uma vaga, e esse rebaixamento jurídico (e humano) é tido pela Casa Grande como a solução para o período recessivo. O uso da força permite o controle de qualquer cabeça desgarrada. O massacre da mídia impõe a normalidade e alimenta esperanças que não alteram o sistema.

Bolsonaro foi ou não criado como um fantoche, enquanto planejaram o desmantelamento do Estado, a privatização da coisa pública e a transformação do Brasil em uma fazenda colonial. E o personagem criado para isso foi mais do que bem sucedido. Representou muito bem todo os donos do poder, mortos e vivos, que conduziram este País. Foi incontrolável, mas coerente. Talvez, se possuísse as máscaras da civilização, não fosse tão longe. Hoje, sua possível supressão não altera a visão do abismo que nos circunda.

Se há farsa, está em nossos sonhos. O que vivemos é uma tragédia, sim.