Pular para o conteúdo principal

A fome e a raiva. Coisa ‘dos home’. Coisa do agro.

Imagem
Arquivo de Imagem
Imagem do site Recontaai.com.br

Foto: Arquivo/Agência Brasil

A miséria me impede de acreditar que tudo vai bem sob o sol.
(Camus)

O direito dos povos de produzir seus próprios alimentos. O direito dos povos de manterem suas políticas de produção e distribuição de alimentos. Não há soberania sem garantir a alimentação. Não há soberania com fome. O dia 16 de outubro, dia da Soberania Alimentar, não pode ser apenas lembrado pela Via Campesina Internacional ou pelo Movimento dos Pequenos Agricultores. É uma questão nacional. Temos vivenciado um período em que a produção e a distribuição de alimentos vem trazendo alta de preços, obrigação de alteração de hábitos culturais e alimentares, insegurança alimentar e, como a cereja do bolo, estamos voltando ao mapa da fome. Todo o nosso cotidiano alimentar se mostra dependente de desejos políticos e empresariais que se uniram neste momento.


A fome e a escassez não são um fenômeno contemporâneo, mas hoje a insegurança alimentar se dá em um contexto em que as condições de alimentação universal estão dadas. E a fome só cresce no mundo. A mídia, seguindo os interesses políticos e empresariais, nos mostra más colheitas provocadas por alterações no clima, a importância de etanol e biocombustíveis que ocupam espaços de agricultura, a alta do dólar empurrando todos os cereais para a exportação, os custos dos transportes dependendo do preço dos combustíveis, o aumento da demanda (culpando especialmente Índia e China) que provoca escassez… Mas a especulação do capital financeiro, que investe crescentemente em produtos agrícolas, não surge nos noticiários. A articulação do capital financeiro com as transnacionais que controlam a produção de sementes e a distribuição de cereais também não é um fato que a mídia nos ensine.


A aposta em mercado de futuros carrega a esperança de que os preços subam. Quanto mais a escassez e a fome se estendem, maiores os lucros das empresas e investidores. Interferir na produção agrícola dos países mais pobres, que deixam de produzir seus produtos tradicionais de alimentação local e se concentram em produtos de exportação, alimentando países desenvolvidos, também não são fatores que pesam nas explicações dos analistas da mídia.


Estamos sujeitos a regras criadas por quem estabeleceu seus próprios benefícios. Há tempos está comprovado que a agricultura e a alimentação industriais, tão decantadas em um país controlado por bíblias, balas, bois e mídia, não são o remédio para nossas mazelas, não matam a nossa fome. E essa realidade não é questionada. As transnacionais, bem instaladas nos governos dos quintais da civilização, não produzem alimentos. Produzem lucros. Quando quiserem te lembrar que o mercado e a iniciativa privada resolvem as questões da pobreza, lembre-se que cerca de 50 empresas transnacionais controlam toda a produção das principais commodities e o comércio global. A produção de alimentos no mundo vive pelo mercado. E a situação é crítica.


No entanto, quando assistimos aos noticiários, não vemos os atores que privilegiam os mercados locais, não vemos cobranças para que governos federais e locais criem incentivos aos pequenos agricultores, não conhecemos as informações sobre quem produz para o nosso consumo e alimenta o mercado interno. Nem com lupa achamos na grande mídia as notícias sobre as ações do MST durante essa pandemia, ou os postos em que os seus produtores vendem arroz orgânico a preço justo e acessível. Pelo contrário. Somos massacrados pela ideia de que agro é tudo.


O agro não é tudo. É a parceria fiel entre latifúndio, transnacionais e mercado financeiro. Agro é o que manda em nosso solo, queimando e desmatando, destruindo biomas, subordinando nossos recursos às necessidades de grandes empresas, dos interesses internacionais e da especulação. Agro expulsa o trabalhador do campo, gera exércitos de reserva para centros urbanos, facilita a venda de terras para compradores estrangeiros, exaure recursos e destrói a biodiversidade.


No dia da Soberania Alimentar, lembremos de quem defende um modelo agrícola que priorize a pequena e média propriedade, a produção para o mercado interno, a criação de novas matrizes produtivas, limpas de agrotóxicos e convivendo com o meio ambiente. Lembremos de quem garante emprego, renda e consciência coletiva. E tentemos fazer da Soberania Alimentar uma questão nacional. E, quando ligarem a tevê, em meio ao seu noticiário favorito, não se esqueçam.
Agro é fome. Agro é raiva. É coisa dos home.